O artigo trata do impacto da reforma tributária sobre os trabalhadores e pequenos negócios.
Por Rosa Freitas
A reforma tributária, amplamente discutida, vai mudar totalmente a nossa realidade econômica e social. Os desafios para os próximos anos impactam todos, mas os pequenos negócios e os trabalhadores pejotizados serão ainda mais prejudicados.
O que parecia ser algo bom e desejado por todos – a possibilidade de abater os tributos ao longo da cadeia de produção, uma reivindicação corrente em busca da não-cumulatividade – pode ser um dos desafios intransponíveis para as EPPs, MEIs, nanoempreendedores e trabalhadores. Vou explicar o que é a não-cumulatividade e como ela se dá.
As faces da não-cumulatividade
Um dos principais benefícios da reforma tributária é o regime de não-cumulatividade, devidamente disciplinado na LC 214/25. Vejamos:
Art. 47. O contribuinte sujeito ao regime regular poderá apropriar créditos do IBS e da CBS quando ocorrer a extinção, por qualquer das modalidades previstas no art. 27, dos débitos relativos às operações em que seja adquirente, excetuadas exclusivamente aquelas consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos do art. 57 desta LC, e as demais hipóteses previstas nesta LC.
A apropriação dos créditos deve estar submetida a duas condicionantes: I – será realizada de forma segregada para o IBS e para a CBS, vedadas, em qualquer hipótese, a compensação de créditos de IBS com valores devidos de CBS e vice-versa; II – está condicionada à comprovação da operação por meio de documento fiscal eletrônico idôneo.
A primeira questão é que a reforma transferiu para o contribuinte o dever de fiscalização próprio da administração fazendária. Somente é possível o creditamento após o antecessor fazer o recolhimento do tributo devido, então vamos ter que sempre “investigar” se os fornecedores das cadeias intermediárias estão adimplentes com a administração tributária.
Os casos de créditos presumidos são aplicáveis em situações bem pontuais: a ZFM tem hipótese dessa natureza, como ainda teriam os coletores incentivados (um nome mais agradável do que catadores de recicláveis). Somente podem transferir ou se apropriar de créditos aqueles que não sejam optantes pelo Simples Nacional tradicional, devendo os fornecedores optarem pelo lançamento de IBS/CBS por fora, ou seja, pelo regime regular. O legislador prevê que aquele que não é contribuinte regular do IBS/CBS não pode nem receber nem transferir créditos, de forma que, havendo um ente na cadeia não declarante de IBS/CBS, o esforço de seus antecessores em fazer o recolhimento será inócuo.
Considero que essa situação é danosa para o empresário, em especial aquele de EPPs e MEIs, que não poderão gerar créditos nem adquiri-los. Para que seja possível o aproveitamento de crédito, deve o adquirente preencher guias e informações tributárias na forma de obrigações isoladas que geram um custo maior de conformidade, pois demandam mais serviços contábeis e sistemas inteligentes caros.
O Simples Nacional é bem-sucedido justamente pelo fato de simplificar as obrigações tributárias com a sistemática de lucro presumido, que se tornará inviável na reforma, seja porque não adquire, seja porque não gera créditos de IBS/CBS.
Assim, para que haja a cadeia de creditamento, devem ser todos os envolvidos optantes do regime regular do IBS/CBS. Pode ser que seja possível um sistema mais vantajoso de Simples Nacional sem opção de recolhimento do IBS/CBS para o empresário, mas ele será desestimulado a aderir. É bem possível que os envolvidos na cadeia produtiva exijam de seus fornecedores a opção pelo regime regular.
Dentre os vários adquirentes que exigirão o regime regular estão os entes públicos, até pela necessidade de recebimento da integralidade do IBS/CBS, nos termos do art. 473 da LC 214/25. As EPPs e MEIs não poderão vender para o poder público ou terão participação restrita, já que não geram créditos apropriáveis.
Os não contribuintes de IBS/CBS
Não são contribuintes de IBS/CBS as situações contempladas no art. 26 da LC 214/25. Na previsão constam várias situações, mas cito apenas duas: os transportadores autônomos de cargas e os produtores rurais. Ou seja, caminhoneiros e agricultores, apesar de adquirirem bens com incidência de IBS/CBS, somente passarão créditos na cadeia se declararem suas operações.
Os caminhoneiros compram combustíveis, insumos e peças para realizarem suas atividades. No caso, eles nem se apropriam nem geram créditos, de forma que se torna mais interessante para as empresas de transporte não contratar ou “agregar” esses não contribuintes.
Os produtores rurais até R$ 3,6 milhões por ano não são contribuintes regulares, até mesmo porque grande parte dos produtos in natura constantes da cesta básica também não têm recolhimento. Mas, para produzir, os produtores rurais precisam adquirir insumos que têm incidência de IBS/CBS.
Nesse grupo de não contribuintes estão também os nanoempreendedores, que são aqueles que movimentam até metade do valor permitido ao MEI no ano fiscal. Os trabalhadores de aplicativos terão a possibilidade de serem enquadrados nessa categoria, mas, apesar de a plataforma recolher IBS/CBS, eles não se beneficiam.
Os nanoempreendedores nem recebem nem pagam IBS/CBS. Já os microempresários, tal qual os contribuintes do Simples Nacional (não optantes da tributação regular), apesar de pagarem um percentual de IBS/CBS conforme os Anexos I a VII da LC 214/25, não gerarão créditos. Mesmo havendo uma parcela menor de recolhimento, esses valores não poderão ser apropriados.
Considerando o cenário, as empresas restringirão ou excluirão da cadeia produtiva os transportadores autônomos, produtores rurais com faturamento até R$ 3,6 milhões, microempreendedores e nanoempreendedores. Já o Simples Nacional, não optante do regime regular, subsistirá apenas em operações B2C (venda ao consumidor final), devendo-se fazer simulações para avaliar a vantagem.
Isto significa que os pequenos negócios, que representam 27% do PIB, 52% dos empregos com carteira assinada, 40% dos salários pagos e 8,9 milhões de micro e pequenas empresas, serão prejudicados.
Não vislumbro qualquer óbice para que fosse admitido crédito presumido nas situações acima indicadas, de modo a favorecer as operações. O mesmo penso sobre créditos presumidos ou qualquer outro modelo para os não contribuintes de que trata o art. 26.
A pejotização como estratégia
A “pejotização”, termo pejorativo para a contratação por meio de pessoas jurídicas, é uma técnica de redução dos custos sociais trabalhistas e previdenciários.
Outro ponto muito relevante é que a reforma incentiva que as empresas coloquem parte de seus trabalhadores como pessoas jurídicas, inclusive com recolhimento de IBS/CBS, para que os adquirentes/tomadores de serviços possam utilizar créditos.
A reforma é, assim, um incentivo à devastação dos direitos sociais por meio da pejotização. Considerando ainda o entendimento da jurisprudência do STF, que sinaliza a terceirização irrestrita, esse movimento é reforçado na reforma do consumo, cujo objetivo máximo é reduzir a tributação das empresas e repassá-la ao consumidor final.
Ninguém vai querer perder crédito, e isso se torna evidente nas estratégias de planejamento tributário das empresas. Nós, advogados e contadores, colocaremos na mesa a opção de terceirização de parte das atividades e a transformação de trabalhadores em prestadores de serviço.
As normas da LC 214/25 são um instrumento radical de desincentivo à proteção social dos trabalhadores, via sistemática de tributação. Qual a motivação para o empregador contratar trabalhadores pagando encargos sociais e sem creditamento, se pode contratá-los como prestadores de serviço com geração de crédito? A resposta é direta: não há qualquer vantagem, na verdade, há desvantagens manifestas no contrato tradicional celetista.
Operações isentas e imunes
As operações imunes, isentas, com diferimento ou suspensão não permitirão a apropriação de créditos pelos adquirentes.
A imunidade e a isenção acarretarão a anulação proporcional dos créditos relativos às operações anteriores. Ressalvada a previsão do art. 52, no caso de operações sujeitas à alíquota zero, serão mantidos os créditos.
Os créditos do IBS e da CBS poderão ser utilizados na seguinte ordem: I – compensação com saldo vencido, não extinto e não inscrito em dívida ativa; II – compensação com débitos do mesmo período; III – compensação com débitos de períodos subsequentes, obedecida a ordem cronológica.
Ressarcimento de créditos de IBS/CBS pelo valor nominal
Os créditos do IBS e da CBS serão apropriados, compensados ou ressarcidos pelo seu valor nominal (art. 52, § 2º, da LC 214/25). Enquanto a Fazenda cobra juros e mora, ao contribuinte não se garante igual tratamento. O STF ainda debate (temas 810 e 1349) qual índice de correção monetária deve prevalecer, mas é certo que o valor nominal desrespeita o princípio da vedação ao enriquecimento sem causa.
Inconstitucionalidade material e o princípio de vedação ao retrocesso
A EC 132/23 deu nova redação ao art. 146, III, “d”, definindo o tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte, inclusive com regimes especiais ou simplificados.
Na prática, a LC 214/25 contradiz esse preceito. Ao fingir proteger, coloca os pequenos em uma encruzilhada: como vender/fornecer sem gerar créditos nem qualquer atrativo para os adquirentes?
O legislador infraconstitucional não cumpriu o incentivo aos pequenos negócios, em afronta direta ao art. 179 da CF:
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas.
Essa é a verdadeira inconstitucionalidade da reforma. Enquanto muitos falam de pacto federativo, prefiro tratar do pacto social da Constituição de 1988. A reforma prejudica os pequenos, pois nenhum deles usa ou gera créditos. Suas operações serão sempre mais onerosas. E as razões para não comprá-los ou incluí-los na cadeia são contundentes.
Concluímos que:
A não-cumulatividade exclui MEIs, EPPs e nanoempreendedores da cadeia produtiva formal;
Pequenos negócios não geram créditos, tornando-se menos atrativos;
Obrigações acessórias e custos de conformidade inviabilizam sua permanência no regime regular;
A pejotização será ampliada como estratégia fiscal, fragilizando a proteção trabalhista;
A LC 214/25 contradiz os arts. 146 e 179 da CF, penalizando os pequenos;
A Reforma, sob pretexto de simplificação, favorece os grandes e exclui os pequenos.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Emenda Constitucional n.º 132, de 20 de dezembro de 2023. Altera o Sistema Tributário Nacional e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 20 dez. 2023.
BRASIL. Lei Complementar n.º 214, de 11 de julho de 2025. Dispõe sobre o IBS, a CBS e o Comitê Gestor. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 jul. 2025.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Tema 810 – Repercussão Geral. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 28 ago. 2025.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (Brasil). Tema 1349 – Repercussão Geral. Disponível em: https://www.stf.jus.br. Acesso em: 28 ago. 2025.
Rosa Freitas
Doutora em Direito pelo PPGD/UFPE, professora universitária, Servidora pública, Escritório Rosa Freitas Advocacia em Direito público, palestrante e autora do livro Direito Eleitoral para Vereador.
Fonte: Migalhas