Caso Ultrafarma expõe distorções da ST e leva Fazenda a endurecer regras

Enquanto o Governo de SP se mobiliza para ‘aumentar a segurança na apropriação de créditos de ICMS’, tributaristas criticam medidas por dificultarem ainda mais o acesso do contribuinte com direito efetivo a recebê-los – em especial o pequeno varejo. Reforma tributária promete reverter esse quadro

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A Operação Ícaro, deflagrada no último dia 12 de agosto, desarticulou um esquema de pagamento de propina por varejistas a auditores fiscais da Secretaria de Estado da Fazenda e Planejamento de São Paulo e trouxe à tona distorções do sistema tributário, especificamente do regime de substituição tributária (ou ST), já que a propina de R$ 1 bilhão repassada aos auditores foi o pagamento para furar a fila da devolução de créditos de ICMS.

A investigação levou à prisão temporária o dono da rede Ultrafarma, Sidney Oliveira, o diretor estatutário da Fast Shop, Mauro Otávio Gomes (já liberados sob fiança) e o auditor fiscal da Fazenda Arthur Gomes da Silva Neto, considerado o cérebro da operação. 

Com a repercussão, a Fazenda paulista anunciou a formação de um grupo de trabalho três dias depois da operação e publicou, na noite de terça-feira (19), novas regras para “reforçar o controle e aprimorar processos que aumentem a segurança e a conformidade na apropriação de créditos de ICMS”, em “resposta aos fatos apurados pela Operação Ícaro”, conforme comunicado no portal do Governo de São Paulo.

Porém, especialistas em direito tributário afirmam que a complexidade operacional e documental exigida pela legislação paulista, especialmente no caso do ICMS-ST, pode gerar um ambiente mais propício a irregularidades no cálculo desse crédito. Sem contar a demora.

“Contribuintes que apuram valores pagos a maior têm direito à restituição, mas o processo para comprovar esse direito é extremamente técnico e burocrático”, explica a advogada Jéssica Garcia Batista, sócia do escritório Peluso, Guaritá, Borges e Rezende Advogados (PGBR)

Com a medida, a Fazenda afirma que haverá mais rigidez na avaliação dos processos e redução do escopo de transferências de créditos de ressarcimento a terceiros do ICMS retido. Além disso, o comunicado informa que o Governo de São Paulo revogou o Decreto nº 67.853/2023, que previa o procedimento de “apropriação acelerada”. “A partir de agora, todos os processos seguirão o rito de auditoria fiscal até a conclusão da revisão completa dos protocolos.”

Se de um lado o compromisso da Secretaria é “entregar um sistema mais seguro, moderno e transparente, baseado em malhas de fiscalização, recursos tecnológicos avançados e regras de integridade reforçadas”, nas palavras do secretário da pasta, Samuel Kinoshita, de outro, a medida foi criticada por tributaristas.

O contribuinte que efetivamente tem direito à restituição do ICMS-ST vai enfrentar um cenário ainda mais complexo, com ‘aprimoramentos’ como processamento automatizado para checagem das informações e cruzamento com outras bases de dados, rastreabilidade ampliada, conta corrente digital do e-Ressarcimento e integrações futuras com novas plataformas de controle, “fortalecendo a governança e a capacidade de monitoramento”, ainda de acordo com o comunicado. 

“A revisão dos procedimentos pelo governo para operacionalizar o ressarcimento do ICMS-ST deve prejudicá-los. A tendência é que as etapas de análise administrativas sejam mais criteriosas e demoradas. Os agentes fiscais devem ser ainda mais detalhistas e exigentes quanto à documentação de suporte e o Governo mais cuidadoso em relação à idoneidade das empresas que pleiteiam seus direitos”, diz Gustavo Taparelli, tributarista do Abe Advogados. 

Carlos Eduardo Navarro, advogado tributarista e sócio do Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados tem opinião semelhante: embora esperado, é absolutamente lamentável que a Fazenda torne mais complexo o ressarcimento de ICMS-ST aos contribuintes. “O que o Governo deve fazer é arrumar a casa, ampliar os controles internos, e não fazer com que os bons contribuintes paguem pelos maus contribuintes e auditores.”

Pequeno varejo é o mais prejudicado

Entre os setores que podem ser afetados pela medida, o varejo acaba sendo o mais prejudicado nesse tipo de operação, segundo a advogada Jéssica Batista, do escritório PGBR, por ser responsável pela venda ao consumidor – ou seja, por estar no elo final da cadeia.  

No regime de substituição tributária, explica, o imposto é recolhido antecipadamente com base em uma margem de valor presumida: se o produto for vendido por um valor inferior ao presumido, o contribuinte (geralmente o varejista) tem direito à restituição da diferença. 

Por exemplo: se a base de cálculo presumida foi R$ 150, mas o produto foi vendido por R$ 100, houve recolhimento a maior. Considerando uma alíquota de 8%, o ICMS-ST pago foi de R$ 27, enquanto o devido seria R$ 18. “A diferença de R$ 9 é o que pode ser restituída”, afirma. 

Aí é que começa a complexidade, de acordo com a advogada, já que a responsabilidade pelo recolhimento do imposto é atribuída a um único contribuinte da cadeia, e geralmente é a indústria que antecipa o pagamento do ICMS devido nas etapas seguintes.

No setor farmacêutico, o imposto é recolhido pela indústria, e os distribuidores e varejistas (como farmácias) não realizam novo recolhimento, pois o tributo já foi antecipado. O sistema é amplamente adotado pela Fazenda paulista em segmentos como bebidas, medicamentos, autopeças, higiene pessoal e produtos de limpeza – por isso o varejo é quem mais sofre com os entraves burocráticos para obter a restituição dos valores de ICMS pagos a maior.

O desafio é ainda maior para pequenos varejistas, destaca Jéssica, já que o processo de ressarcimento exige conhecimento técnico, sistemas adequados e profissionais especializados. Sem acesso a consultorias ou contadores com domínio da apuração do ICMS-ST, esses estabelecimentos enfrentam dificuldades para operacionalizar os pedidos de restituição.

“A falta de estrutura e familiaridade com os requisitos legais impostos pela Secretaria da Fazenda acaba por limitar o exercício pleno do direito ao crédito, tornando o varejo o segmento mais vulnerável nesse contexto”, reforça a advogada. 

Há ainda outro problema que dificulta a vida do pequeno empresário, como na restituição de créditos de exportação, além das saídas com isenção no meio da cadeia produtiva – principalmente em operações interestaduais, já que o imposto é decorrente da incidência de ser arrecadado por outro estado da federação, segundo o advogado Salvador Cândido Brandão Jr., também sócio do escritório Galvão Villani, Navarro, Zangiácomo e Bardella Advogados. 

“Mas o estado exportador fica com a obrigação de criar mecanismos para assegurar ao contribuinte a utilização desse crédito, e isso é muito complexo para o contribuinte, com os estados sempre criando dificuldades e procedimentos muito burocráticos”, destaca.

Reforma tributária acaba com as irregularidades?

O atual sistema de tributação sobre o consumo, que passará por transição com a reforma tributária a partir de 2026, promete acabar com esse tipo de irregularidade a partir do momento em que a substituição tributária sair de cena e os possíveis créditos de imposto sejam ressarcidos via split payment, aplicado pelo Comitê Gestor do IBS, para atender aos objetivos de simplificação e eficiência.

Obrigatório nas transações comerciais, incluindo vendas no varejo, o mecanismo deve funcionar automaticamente nos principais meios de pagamento, como pix e cartões de débito e crédito, imediatamente após a operação – sinalizando uma expectativa ao contribuinte de acesso mais rápido ao crédito do imposto.

Jéssica Batista, do PGBR Advogados, diz que a reforma tributária introduzirá mudanças relevantes na apuração e pagamento dos tributos, como o IBS e a CBS, como maior integração digital entre sistemas de emissão de documentos fiscais e arrecadação. “Em tese, as medidas visam reduzir fraudes e aumentar a transparência nas operações tributárias”, explica. 

Já para o advogado Salvador Brandão Jr., do escritório Galvão Villani, o mecanismo de incidência do IBS/CBS, com a tributação no destino e a destinação do produto da arrecadação apenas ao consumidor final, é o grande mérito da reforma. No caso do IBS, enquanto não tem consumo final, todo o dinheiro fica no Comitê Gestor, que irá ressarcir os créditos. “Nenhum estado ou município arrecada se não acabar a cadeia produtiva, para evitar esse tipo de problema.”

Porém, destaca Jéssica, apesar dessas promessas, persistem riscos e limitações que podem dificultar a efetividade das mudanças na prática. Uma é a persistência de entraves na restituição de créditos. A reforma prevê prazos para restituir tributos pagos indevidamente – 180 dias, podendo chegar a 360 em caso de fiscalização. “Esses prazos são semelhantes aos atuais, e continuam sujeitos à análise e chancela do fisco, mantendo risco de demora e burocracia.”

Outro, segundo a advogada, é o histórico de lentidão e restrições financeiras: a experiência atual mostra que, mesmo com fiscalizações rápidas (em até 120 dias), a liberação dos créditos pode levar mais de oito meses, principalmente por restrições orçamentárias dos estados. 

“Um exemplo é o estado de São Paulo, que acumula R$ 50 bilhões em créditos de ICMS a ressarcir, segundo levantamento da Fiesp apresentado em reportagem recente do jornal Valor Econômico.”

Um terceiro ponto são as promessas de agilidade versus realidade operacional, aponta Jéssica. Embora representantes do governo afirmem que os novos sistemas trarão mais agilidade, a experiência prática mostra que a implementação tecnológica e a mudança de cultura administrativa são processos lentos e com impactos orçamentários – o que pode acarretar a retenção prolongada dos créditos para evitar um quadro de perda de arrecadação.

Em resumo, afirma, a reforma pode dificultar certos tipos de fraudes, como a dos casos das varejistas Ultrafarma e Fast Shop – especialmente os relacionados à sonegação e simulação de operações, graças ao split payment e à maior rastreabilidade. Por outro lado, não elimina problemas estruturais que afetam restituição de créditos e eficiência do sistema tributário. 

“A melhora dependerá não apenas da legislação, mas da efetiva implementação dos sistemas, e do compromisso no respeito aos prazos legais previstos na norma”, afirma.

Como cada estado é autônomo para prever o procedimento de apuração do crédito acumulado e sua utilização, em São Paulo essa utilização só pode ser realizada dentro do estado, transferindo para outro estabelecimento, pagando fornecedor ou vendendo o crédito, lembra Brandão Jr.: não existe a possibilidade de ressarcimento (o estado não põe a mão no bolso), e não existe a possibilidade de compensação de débitos. Porém, recentemente, o estado de São Paulo passou a permitir o uso de crédito acumulado para pagamento de dívida de ICMS constituída em auto de infração. “Mas nada é rápido, tudo demora, difícil prever o tempo”, alerta o especialista.

Sem furar a fila, mas ainda a perder de vista

Existem meios de restituir esses créditos dentro da lei que devem ser seguidos à risca, e que ainda podem ser utilizados de outras formas – como na liquidação de débitos. Segundo a tributarista Jéssica Batista, a legislação paulista prevê o ressarcimento em dinheiro do crédito de ICMS-ST, bem como sua utilização para liquidação de débitos escriturais do sujeito passivo.

Há outras hipóteses que também autorizam o ressarcimento, como a transferência para fornecedores e liquidação de débitos do ICMS próprios ou de terceiros, explica.

Além do ICMS-ST, a advogada explica que a legislação paulista também permite a utilização de créditos acumulados de ICMS (créditos gerados por operações de exportação, venda sem benefícios fiscais e redução de bases de cálculo) para liquidação de débitos fiscais do próprio imposto, inclusive aqueles decorrentes de importações. “Essa compensação pode ocorrer tanto com débitos correntes quanto com débitos inscritos em dívida ativa, desde que observadas as regras específicas previstas no Artigo 79, 587 e seguintes do RICMS/SP”, lembra. 

Ela cita formas de utilização desses débitos, como a compensação direta com débitos fiscais, mediante requerimento formal à SeFaz, respeitando os procedimentos previstos na lei estadual. “Porém, débitos decorrentes de ST não podem ser liquidados com crédito acumulado.”

Também é possível fazer essa transferência de crédito a terceiros/empresas via Programa ProAtivo para o crédito acumulado do ICMS, mediante autorização da Fazenda paulista. A advogada lembra que a 12ª rodada foi regulamentada pela Portaria SRE 43/2025 e Resolução SFP 22/2025, com liberação prevista para setembro de 2025 e limite global de R$ 1,5 bilhão. 

Desse montante, segundo ela, empresas exportadoras para os Estados Unidos podem transferir até R$ 12 milhões por mês, e as demais, até R$ 3 milhões/mês. O pedido de adesão deve ser feito via sistema SIPET até o próximo dia 02 de setembro de 2025.

O tempo estimado de acesso aos créditos, porém, continua longo: se for via compensação direta, o prazo depende da análise e homologação do crédito pela Sefaz, explica a advogada, e pode levar de 6 a 8 meses em média, podendo se estender em caso de fiscalização.

Caso seja via ressarcimento ou monetização, com a reforma tributária os créditos acumulados até 2032 poderão ser compensados ou ressarcidos em até 240 parcelas mensais (20 anos), conforme previsto no artigo 133 do ADCT (Ato das Disposições Constitucionais Transitórias). 

Esse prazo é considerado excessivamente longo e pode comprometer o fluxo de caixa das empresas, além do próprio montante do crédito, pois o valor não sofre atualização, lembra Jéssica, que diz que o Programa ProAtivo representa uma alternativa mais ágil, mas depende da abertura de rodadas e da regularidade fiscal do contribuinte. 

“Embora existam caminhos legais para utilização dos créditos, o acesso efetivo continua sujeito a entraves burocráticos e financeiros, como necessidade de homologação estadual e limitação orçamentária”, alerta. E o contribuinte, como fica? À espera da reforma – e dos próximos acontecimentos. 

Fonte: Diário do Comércio

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